Discos para história: Secos & Molhados, do Secos & Molhados (1973)


A 15ª edição do Discos para História fala sobre um dos melhores álbuns feitos no Brasil: a estreia do Secos & Molhados no mercado fonográfico. Em plena ditadura militar, João Ricardo Ney Matogrosso e Gerson Conrad deram novo ânimo e mudaram o curso das coisas da música brasileira.

Ainda sem o nome Secos & Molhados, João Ricardo já tocava e apresentava algumas canções em bares, mas faltava uma voz para interpretá-las. Então, graças a uma amiga em comum, João foi apresentado a Ney Matogrosso, dono de uma das vozes mais marcantes do Brasil em todos os tempos. Junto com Gerson Conrad, o trio deu nome ao grupo, e isso foi uma forma de tentar abranger ao máximo seu público.

Era impossível não prestar atenção neles. Com suas letras, sua maquiagem e na maneira como seu vocalista mexia-se no palco, rebolando e cantando, algo impensado naqueles tempos em que Emílio Garrastazu Médici era o presidente do Brasil durante a ditadura militar, período mais sombrio da história do Brasil. Isso fez que eles ganhassem cada vez mais atenção durante os shows – não apenas no vocalista, mas nas músicas.


Durante uma apresentação, o trio chamou a atenção do empresário Moracy do Val, que logo comaçou a agenciá-los e conseguiu, após insistir muito, um contrato com a Continental, grande gravadora do mercado e principal concorrente de empresas estrangeiras, como a Warner, para captar artistas em seu selo no início 
dos anos 1970.

Como aposta da gravadora, o Secos & Molhados não recebeu grande verba para gravar o álbum, já que a Continental apostava no convencional, vamos colocar assim, não em um trio que misturava cantigas brasileiras com psicodelia e folk. Com João Ricardo na direção musical, Moracy também assumiu a responsabilidade de ser o produtor do disco. Em 15 dias, usando um gravador de quatro canais, o LP estava feito e levaria o nome da banda.

O Secos & Molhados tinha o que havia de melhor naquela época: músicos inspirados e canções do folclore brasileiro e português, algo bem interessante, mas que, no fundo, era pop e nascido para transcender limites no período pós-Jovem Guarda – um ano antes, os Novos Baianos lançaram Acabou Chorare, primeiro grande álbum brasileiro dos anos 1970.

Obviamente, é impossível não atestar a influência do Tropicalismo no trabalho e no trio. Se havia a vontade de transgredir nos anos 1960, e isso foi conseguido, os anos 1970 foram importantes para consolidar certas ideologias do movimento liderado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes e amigos.

Uma coisa ajudou bastante nas vendas de Secos & Molhados: uma aparição na primeira edição do Fantástico, revista eletrônica semanal da TV Globo. Diferente dos dias atuais, o programa tinha enorme relevância nacional e contribuía, e muito, no lançamento de vídeos de artistas. Era a explosão necessária para contribuir com o sucesso de um grupo diferente de tudo que tocava nas rádios e programas de TV naqueles tempos.

Ninguém confiava no sucesso do grupo. Por isso, apenas 1.500 cópias do trabalho foram colocadas à venda pela Continental, mas bastou uma aparição no Fantástico para uma mudança de cenário. Essa primeira prensagem não deu nem para o gasto, forçando o derretimento de LPs encalhados para uma segunda leva de Secos & Molhados. Foram vendidos 300 mil álbuns em dois meses, rapidamente transformados em um milhão no final de 1973. As vendas eram tão absurdas que até o reinado de Roberto Carlos, cantor que mais vendia à época, estava ameaçado.

Mais conhecidas, “O Vira” e “Sangue Latino” tocavam quase sem parar nas rádios. Mas não apenas as duas. Durante o dia, facilmente você conseguia ouvir o LP inteiro, e isso colaborou para colocar o Secos & Molhados na trilha do sucesso e lotando turnês não só no Brasil, mas por toda América Latina.

A capa foi produzida e fotografada por Antônio Carlos Rodrigues, fotógrafo do jornal carioca ‘Última Hora’ e mostra a banda, mais o baterista Marcelo Frias – único não maquiado –, com as cabeças em uma mesa. A seção de fotos foi marcante, pois eles demoraram uma madrugada inteira para fazer tudo. E dias depois, Farias abandonou o grupo.




Resenha de Secos & Molhados

Qualquer compositor no mundo deseja escrever um hit – se ele falar que não, ele é um mentiroso de marca maior. E é com um hit que começa Secos & Molhados, já que “Sangue Latino”, até hoje, é cantada por Ney Matogrosso em sua carreira solo. A sonoridade de “Sangue Latino” é suficiente para ganhar o ouvinte – até quem não é fã de MPB, como é meu caso em particular – como a linha de baixo, eternizada até os dias de hoje. O que também está eternizada é a letra, que fala dos problemas vividos na América Latina naqueles tempos.

A segunda faixa do disco, apesar de parecer infantilizada pela letra, tem uma força incrível, a começar pela guitarra quase fatal de John Flavin. Misturando música portuguesa – a popular dança chamada Vira está na letra –, rock e forró, “O Vira” é o grande sucesso do Secos & Molhados na curta história do trio pela sua facilidade em dialogar com o povo que estava atento à programação das rádios.

Após a animação de “O Vira”, a melancolia entra em ação em “O Patrão Nosso de Cada Dia”, canção em que é impossível não destacar a levada tranquila do violão com a voz de Ney Matogrosso, mostrando que o cantor era versátil o suficiente para cantar em qualquer ritmo que lhe fosse mostrado.



“Amor” conta com outra linha de baixo memorável. Tocada por Willy Verdaguer, ela dá o tom dançante e animado – impossível não imaginar Ney Matogrosso dançando. Os arranjos estão impecáveis e tudo colabora para uma excelente faixa. Completamente diferente, “Primavera nos Dentes”, poema de João Apolinário, é claramente uma referência a “Breathe”, do Pink Floyd, do álbum The Dark Side of the Moon. A letra, de João Apolinário, pai de João Ricardo, fala sobre liberdade individual, mas que fica mesmo na cabeça é a linda melodia.

Em “Assim Assado” tem uma coisa bem brasileira: a percussão, e ela dá um ritmo meio maracatu e, a partir da metade, ganha tons de rock progressivo. A letra é tão legal que usa o Guarda Belo, personagem do desenho Manda-Chuva, para falar do momento que o Brasil vivia à época. É uma canção que conseguiu passar pelo censor mesmo sendo uma faixa que fala sobre o que acontecia a quem desobedecia ao regime. Encerrando o lado A, “Mulher Barriguda” tem uma melodia animada, mas questiona sobre o futuro da próxima geração brasileira caso a ditadura seguisse no poder.

“El Rey” abre o lado B do disco e fala muito, mesmo durando menos de dois minutos, mas ela não é nada se comparada a “Rosa de Hiroshima”. Poema de Vinícius de Moraes, a delicada canção fala sobre os bombardeios nas cidades japoneses de Hiroshima e Nagasaki, e ela também é boa para refletir sobre aquele período, não só no Brasil, mas no mundo. É facilmente uma das melhores músicas brasileiras de todos os tempos.



Outro poema musicado, “Prece Cósmica” tem um riff de guitarra no início, algo que não era muito comum à época, ainda mais com uma levada inspirada no folk – que tem como uma de suas raízes na música celta do século 18 e 19. Quem também ganhou uma versão de suas letras foi Manuel Bandeira na ótima “Rondó do Capitão”, facilmente uma faixa que poderia estar na trilha de Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Penúltima faixa, “As Andorinhas” é densa em seu início, mas, logo que o piano entra, tem tons pop e logo emenda com “Fala”, última faixa, que conta com a participação de Zé Rodix no teclado. Nada como um encerramento primoroso na letra e na melodia para coroar este que é um dos melhores discos da música brasileira.

Ficar conhecidos tão rápido não era a intenção do pessoal do Secos & Molhados, mas, após uma aparição na Globo, a fama veio e como veio. Assim como ficou conhecido, logo o grupo acabou por conta dos desentendimentos internos no ano seguinte. Mas eles não saíram sem antes entrar na história com um trabalho maravilhoso em todos os aspectos. 40 anos depois, as canções seguem tão atuais como naqueles dias de dificuldades e repressão. Palmas para João Ricardo Ney Matogrosso e Gerson Conrad pelo álbum excelente que eles fizeram juntos e pela coragem de misturar tudo que havia de referência na canção.


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