História do disco
Poucas bandas mexeram tanto com o status quo quanto o New York Dolls. Com a encarnação original durando apenas três anos, foi tempo suficiente para entrar na história com o seminal, importante e histórico "New York Dolls", lançado em 1973, um milagre fruto do tempo de existência, da personalidade dos integrantes e de uma indústria da música completamente diferente da atual.
A gênesis do grupo começou alguns anos antes, quando os amigos de escola Sylvain Sylvain (Sylvain Mizrahi) e Billy Murcia começaram a tocar juntos no porão dos pais de Murcia, no bairro do Queens, em Nova York. Amigos de escola, Billy e Sylvain vinham tiveram algumas bandas ao longo dos anos e uma delas tocava em frente ao New York Doll Hospital, inspiração futura para o grupo definitivo da vida deles.
Logo depois, Johnny Thunders (John Anthony Genzale) foi convidado a fazer parte da banda, mesmo sem saber tocar baixo, pela facilidade com que atraia a atenção das garotas. Com esforço, aprendeu, mas queria mesmo ser guitarristas e pediu Sylvain o ensinar. Acabou aprendendo e virou o guitarrista base da banda. E, com a vaga aberta no baixo, eles convidaram Arthur "Killer" Kane para ficar com o instrumento. Faltava o vocalista. E Kane conhecia um cara.
Estou no Twitter e no Instagram. Ouça o podcast, compre livros na Amazon e fortaleça o trabalho do blog!Certo dia, Kane bateu na porta de David Johansen, um cara que todos ali sabiam que cantava. Convite feito, convite aceito. Assim, nascia um grupo com uma marca registrada: desprezar completamente a música mainstream, longos solos, rock progressivo e a indústria da música de maneira geral.
"A era do rock de estádio, solos de bateria de meia hora, solos de guitarra de 20 minutos, era tão chata. Não era mais da garagem, do porão ou da rua, era corporativo. Nós odiamos essa merda e nos rebelamos contra ela. Nós nos apresentaríamos onde poderíamos tocar o público e eles poderiam nos tocar. Todas as nossas músicas eram três minutos de mágica, tão longas quanto precisavam ser, e uma incrível variedade de as pessoas estavam morrendo de vontade de ouvir um som assim, fomos imediatamente abraçados, mas tudo o que fizemos foi voltar ao que deveria ser: curto, nítido, vivo e direto", explicou Sylvain para 'Classic Rock'.
Uma das pedras fundamentais do grupo era o visual andrógino com roupas para mulheres, eram personalizados diretos de brechós e inspirados nas drags da época e do visual noturno do bairro onde moravam, povoados por travestis, gays extravagantes, prostitutas e garotos de programa e instalações de artes com o sadomasoquismo como tema, trabalho que deixaria Robert Mapplethorpe orgulhoso.
Sem qualquer referência do presente ou do passado na ativa, o New York Dolls passou a reinar sozinho na loucura musical criada por eles mesmos sobre a própria vida. Com os cinco morando juntos em um loft em que a palavra "nojento" não consegue traduzir o lugar, álcool e drogas em excesso eram a regra. Mas eles ainda conseguiam escrever boas músicas. E como eles eram bons.
Na mesma medida em que conquistavam o público em apresentações épicas, assustavam integrantes de gravadoras, que os recusavam aos montes. Quem os abraçou totalmente foi a imprensa inglesa e, do nada, passaram a tocar para oito mil pessoas ao invés das 300 habituais. Ninguém está preparado para isso, e eles muito menos. Mas uma tragédia abalou a banda e colocou, para sempre, o rótulo de drogados e inconsequentes.
Perto de assinar o primeiro contrato de gravação com a Track, Billy Murcia morreu afogado após desmaiar sob efeito de champanhe e Mandrax. Ele tinha apenas 21 anos. Ao retornarem para Nova York, os integrantes decidiram seguir com Jerry Nolan na bateria. Mais velho, mais durão e ex-membro de uma gangue, virou a figura paterna dos outros quatro e ajudou a organizar o caótico som, influenciando principalmente Johnny Thunders.
Os problemas não impediram o crescimento constante do New York Dolls e, após muita ponderação da diretoria, a gravadora Mercury fez uma proposta, aceita de prontidão, para dois discos de estúdio. O problema seria encontrar um produtor disposto a trabalhar com eles, algo que demorou muito. Phil Spector, Roy Wood e a dupla Leiber e Stoller recusaram prontamente com a mesma alegação: "era difícil trabalhar com eles" - e isso vindo de Spector tem um significado todo especial.
Mais álbuns dos anos 1970:
Discos para história: Pérola Negra, de Luiz Melodia (1973)
Discos para história: Greetings from Asbury Park, N.J., de Bruce Springsteen (1973)
Discos para história: Sonhos e Memórias 1941–1972, de Erasmo Carlos (1972)
Discos para história: The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de David Bowie (1972)
Discos para história: La Biblia, do Vox Dei (1971)
Discos para história: Songs of Love and Hate, de Leonard Cohen (1971)
"Então, estávamos sentados no Max's [Kansas City, boate e restaurante] imaginando o que fazer, quando olhamos para a mesa ao lado e lá está Todd [Rundgren]. Ele sabia o que éramos, quem éramos como rapazes e não tinha medo de nós, então ele foi a escolha mais natural do mundo", contou David Johansen, sobre como Todd Rundgren virou o produtor do primeiro álbum da banda.
Ao agendar do Record Plant, em Nova York, para a gravação, Rundgren viu a enrascada que se meteu. O estúdio era considerado o pior da cidade, mas único disponível para receber a banda e o pouco tempo disponível para fazer o trabalho necessário. A expectativa da imprensa sobre o trabalho não ajudava, tampouco o entra e sai de gente atrás dos integrantes com drogas e bebidas. Além disso, a ética de trabalho do produtor entrava em conflito com os horários "alternativos" dos cinco, porém nada que abalasse a confiança deles. Ao contrário, ao lutar para deixar o som melhor e mais encorpado, Rundgren é alvo de admiração até hoje dos integrantes ainda vivos.
Como não havia uma história a ser contada através das letras para estabelecer uma ordem ou algo do tipo, as músicas de maior sucesso entre o público foram as escolhidas para fazer parte do primeiro disco. E foi envolvendoo repertório o único conflito mais pesado: na hora de mixar o trabalho, quando cada um queria o próprio instrumento em destaque em detrimento do colega, a coisa esquentou. De um lado, banda e gravadora estavam apressados; do outro, Todd queria mais tempo. No fim, mixagem não levou nem um dia de trabalho, frustrando o produtor.
Lançado em 27 de julho de 1973 nos Estados Unidos, "New York Dolls" apresenta a banda em uma foto bastante ousada, com os cinco vestindo roupa de mulher e parecendo drags. A campanha de marketing tinha o slogan "Apresentando The New York Dolls: uma banda que você vai gostar, goste ou não" e "A banda que você ama odiar". Mas nada disso foi suficiente para alavancar as vendas e o LP estreou na decepcionante posição número 116 da parada, frustrando críticos, gravadora e o próprio New York Dolls.
Veja também:
Discos para história: Nora Ney, de Nora Ney (1958)
Discos para história: The Composer of Desafinado, Plays, de Tom Jobim (1963)
Discos para história: As Plantas que Curam, do Boogarins (2013)
Discos para história: Admirável Chip Novo, de Pitty (2003)
Discos para história: Gabriel O Pensador, de Gabriel O Pensador (1993)
Discos para história: O Ritmo do Momento, de Lulu Santos (1983)
Ao longo dos meses, o uso de drogas e álcool por parte da banda piorou, com Thunders e Nolan partindo para heroína, Kane cada dia mais bêbado e com problemas para tocar por conta de uma briga com a namorada que tentou cortar os dedos dele fora. Assim, aquela efervescência do início foi morrendo e nunca mais eles fariam um trabalho igual ao primeiro.
Inspiração para o punk e vários outros artistas de sucesso nos anos 1980, "New York Dolls" conseguiu traduzir como poucos a Nova York dos anos 1970. Sem o MC5 e o Velver Underground, símbolos de uma época ousada no rock alternativo e nas artes, o New York Dolls preencheu esse espaço como poucos teriam a capacidade de fazer tão bem. Cinquenta anos depois, eles são mais influentes do que nunca na música, algo que ninguém tira deles.
Crítica de "New York Dolls"
Abrir um disco com uma canção matadora logo de cara é muito difícil, não para o New York Dolls. "Personality Crisis" virou uma dessas músicas com uma tremenda influência na história do rock ao falar sobre drogas, distúrbio de personalidade e o desgosto pela vida. Animada, com as guitarras em volume máximo e o acréscimo do piano, a faixa de abertura tem a capacidade de conquistar onze entre dez ouvintes.
"Looking for a Kiss" foi um desses tesouros da discografia da banda. Na época, quem os viu tocando essa música nunca mais esqueceu. A construção da faixa até o refrão tem um brilhantismo juvenil que só poderia ter sido feito na Nova York dos anos 1970 por jovens sem perspectiva alguma para si em outra coisa que não o rock and roll. E o famoso gongo da gravação aparece em "Vietnamese Baby", uma faixa que conta uma história de teor muito real de um dia comum na vida dos integrantes.
A balada "Lonely Planet Boy" aborda a solidão de uma maneira muito peculiar e o saxofone de Buddy Bowser consegue encorpar mais a faixa, deixando mais atrativa. E "Frankenstein (Orig.)" encerra o lado A usando da metáfora para falar da cidade de Nova York, uma mistura de monstro que pode fascinar e assustar na mesma proporção.
Dentro do mesmo assunto, "Trash" apresenta uma visão mais pessoal da cidade, o futuro e a falta de amor em outra história que soa baseada em fatos acontecidos em algum momento antes ou durante a gravação do trabalho para abrir a segunda parte do álbum. O vocal rasgado e a guitarra dominam completamente a potente "Bad Girl", um protótipo de punk muito antes de o gênero nascer alguns anos depois.
Letra de uma banda pré-New York Dolls, "Subway Train" foi reformada e ganhou potência e uma explosão no refrão digna de colocar o Max's abaixo, assim como o solo de guitarra em "Pills", cover de Bo Diddley, um dos grandes momentos dos shows. E se "Private World" é quase uma crônica de um mundo distorcido pelo abuso de drogas, o clássico "Jet Boy" chega com tudo para encerrar o disco em uma das melhores canções dos anos 1970.
Seja com cinco, 15, 25, 35 ou 65 anos: é difícil não ficar impressionado com a potencia sonora do New York Dolls nesse álbum de estreia. Rechado de guitarras, o som encorpado e o trabalho de Todd Rundgren na produção colocatam uma energia parecida com a dos shows. Apesar de não ter vendido muito e ser execreado por alguns críticos da época, quem apostou neles estava certo e a história fez o favor de colocá-los no lugar de merecido destaque.
Ficha técnica
Lado A
1 - "Personality Crisis" (David Johansen/ Johnny Thunders) (3:41)
2 - "Looking for a Kiss" (Johansen) (3:19)
3 - "Vietnamese Baby" (Johansen) (3:38)
4 - "Lonely Planet Boy" (Johansen) (4:09)
5 - "Frankenstein (Orig.)" (Johansen/ Sylvain Sylvain) (6:00)
Lado B
1 - "Trash" (Johansen/ Sylvain) (3:08)
2 - "Bad Girl" (Johansen, Thunders) (3:04)
3 - "Subway Train" (Johansen/ Thunders) (4:21)
4 - "Pills" (Bo Diddley) (2:48)
5 - "Private World" (Johansen/ Arthur Kane) (3:39)
6 - "Jet Boy" (Johansen/ Thunders) (4:41)
Gravadora: Mercury
Produção: Todd Rundgren
Duração: 42min44
David Johansen: gongo, gaita e vocal
Arthur "Killer" Kane: baixo
Jerry Nolan: bateria
Sylvain Sylvain: piano, guitarra e vocal
Johnny Thunders: guitarra e vocal
Buddy Bowser: saxofone
Todd Rundgren: piano e sintetizador Moog
Alex Spyropoulos: piano
Jack Douglas e Ed Sprigg: engenheiro de som
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