Entrevista: Alex Figueira


Por Giovanni Cabral

Edição: Fagner Morais

Psicodelia e tropicalismo. Essa é a fórmula base apresentada pelo grupo holandês Fumaça Preta, que lançou a seu primeiro disco em 2014. Tudo foi construído por Alex Figueira, venezuelano criado em Portugal e, atualmente, morando Amsterdã.

Na Holanda, Alex conheceu os músicos ingleses Stuart Carter e James Porch, e as fronteiras geográficas da banda são ainda maiores: Joel Stones, brasileiro radicado em Nova York, foi o responsável pelos vocais e letras. Joel é conhecido pela célebre loja Tropicália in Furs e por ser o responsável pela compilação Brazilian Guitar Fuzz Bananas. Isso explica um pouco da brasilidade presente neste registro (clique aqui para ler a entrevista com Stones)

Vale ressaltar a obsessão de Alex Figueira, um escavador das sonoridades mais viajadas do lado de cá do Oceano Atlântico. Há evidentes influências brasileiras, como a tropicália de Tom Zé e Gilberto Gil, e o manguebeat de Chico Science & Nação Zumbi, tudo isto aliado a doses de jazz-fusion, funk e batidas africanas.

A sua mudança de Portugal para Amsterdã foi com o objetivo de buscar novos ares culturais?

Houve várias razões para eu vir morar pra Amsterdam, mas essa busca de novos ares culturais foi uma das principais razões, sem dúvida. Essa mudança abriu muitas portas com as quais eu nem sequer teria ousado sonhar. Foi uma decisão infinitamente positiva.

Você tem o seu próprio estúdio, o Barracão. Isto ajudou nas suas experimentações sonoras?

Sim, essa foi uma das tais portas que se abriram. Algo que eu não teria sido capaz de imaginar dez anos atrás. Foi um processo bem doloroso, mas que pôs à prova a minha força de vontade. Fiz muita cagada durante os dois anos que passei o construindo – algumas monumentais mesmo – e, várias vezes, tive de recomeçar, da forma correta. Essa aprendizagem acompanha-me até hoje. Aprendi que optar pelo suficiente pode parecer uma solução viável, mas que acaba por não valer a pena ao longo prazo.

Quando decidi construir um estúdio, fiz porque sabia que minhas ideias não seriam aceitas num ambiente de estúdio profissional. O Barracão é o espaço que me permite fazer música da maneira que eu acho que deve ser feita. Essa maneira vai contra o que as pessoas aprendem nas escolas de música. Considero-me extremamente afortunado por ter a liberdade que o meu próprio espaço de experimentação me proporciona. Hoje em dia, não teria qualquer vontade de fazer música senão fosse nos meus próprios termos.

Sobre a criação do seu próprio selo, a Music With Soul, havia uma insatisfação com a indústria fonográfica? E como foi lançar os registros do The Grits e The Slackers?

Sim, essa foi a motivação. Surgiu da frustração que sentia cada vez que ia às lojas de discos. Daquilo que encontrava lá, a maioria parecia-me muito morno, pouco arrojado. Eu queria botar a agulha no disco e ficar de boca aberta como da primeira vez que ouvi um disco dos Sonics ou dos Mutantes, mas isso quase só acontecia com discos velhos ou reedições. Eu queria ouvir bandas de hoje – não sou saudosista e acho o revivalismo militante uma estupidez – com a mesma coragem das bandas dos 1960 ou 1970, com aquela garra, aquela honestidade, mas isso raramente acontecia. Decidi agir e procurar bandas que entendessem esse conceito. Que fizessem música enraizada nesses princípios orgânicos de outrora, mas viradas pra o futuro, experimentando, derrubando paradigmas e cagando pra os protocolos dos gêneros musicais. Perguntei primeiro aos Slackers, que eram bons amigos e abraçavam essa filosofia desde os seus inícios. Depois foi The Grits, que eu não tive de explicar absolutamente nada, foi empatia imediata.


A Soundway Records tem um belo catálogo de bandas. Agradou de imediato a escolha de lançar o primeiro álbum com eles?

Claro que sim. É um selo de extrema qualidade que já admirava e, hoje em dia, admiro ainda mais por ter tido a coragem de lançar um disco tão particular como o nosso. Recebi respostas de outros selos que diziam coisas do tipo "esse disco tá do caralho!! O melhor que eu já ouvi nos últimos tempos. Peço desculpa, mas não posso lançar". É exatamente essa falta de coragem que me aborreceu ao ponto de eu passar a lançar música. São precisos muitos mais selos como a Soundway!

Como nasceu a ideia de criar o Fumaça Preta? Jams de estúdio?

Eu nunca tive a ideia, pra ser sincero. Eu só queria era fazer música com pessoas que estimo e admiro muito enquanto músicos. Quando eu juntei o Stuart, o James (ambos dos Grits) com o Joel Stones no estúdio foi apenas pra ver como soaria nós os quatro no Barracão. Nunca me passou sequer pela cabeça a ideia de um dia vir ter uma banda com eles. Tudo foi acidental. O primeiro single ficou fodido ao ponto de eu achar que valia a pena lançar em .45, e assim fiz. A gente gostou tanto da experiência que quisemos logo fazer mais um. Depois do êxito do segundo, quisemos fazer mais, e foi só depois de ter muitas músicas que a ideia de criar um álbum surgiu, porque achamos que as músicas eram boas o suficiente e mereciam ser lançadas.

Algumas das músicas surgiram de improvisações?

Eu diria que Fumaça Preta é uma grande improvisação. Nunca entramos no estúdio com uma ideia preconcebida. Foi tudo feito no momento e trabalhado entre todos. "Improvisa e vencerás", dizia o John Coltrane!

O som da banda mescla elementos de funk, fusion, psicodelia e tropicalismo. Nesse caldeirão musical, o segredo é a liberdade?

Sem a menor dúvida. A única intenção que sempre tivemos foi a de surpreendermos a nós próprios. Para fazer isso, é preciso ser livre. É preciso criar sem segundas intenções. A variedade de gêneros incorporados ao nosso som tem a ver também com a variedade das nossas influências. Cada um gosta de coisas diferentes e, em lugar de limitarmos isso, preferimos fazer disso uma virtude.


Quando foi o primeiro contato com a música brasileira?

O primeiro de todos foi com a minha mãe, que era fã fervorosa da fase romântica do Roberto Carlos. Na adolescência, descobri o manguebeat na mão dos meus amigos de Desorden Público, que tinham um programa de rádio sensacional na Venezuela, onde cresci. Lá divulgavam música underground de todo o mundo, Radio Pirata chamava-se. Mais adiante descobri Mutantes e toda Tropicália e, depois de mergulhar a fundo nesse incrível movimento, apaixonei-me perdidamente pela música Brasileira de maneira mais abrangente, desde Noel Rosa até Bezerra da Silva. Levo já vários anos pesquisando, de norte a sul, e cada vez mais descubro novos ritmos, novas fusões, novas abordagens. É um universo impressionante. Não conheço nenhum outro lugar no mundo com tanta diversidade cultural.

Consegui ouvir ecos de Mutantes, Tom Zé, Casa das Máquinas e Gilberto Gil no som de vocês? Quais as influências principais aqui do Brasil na criação da obra?

Eu diria que todos esses que menciona e muitos outros. Toda a psicodelia brasileira é, para o Joel e para mim, uma enorme influência. O conhecimento do Joel nessa área é enciclopédico. Além de todos os nomes mais conhecidos, um cara que mudou a minha vida foi o Paulo Bagunça e a sua Tropa Maldita. Ele fez um disco impressionante em 1974, bem depois do frenesi tropicalista, que foi um antes e depois. Eu costumava seguir as postagens do maravilhoso blog 'Brazilian Nuggets' e gostava de muitas das coisas que apareciam lá, mas quando surgiu esse disco, foi como se alguém tivesse juntado todos os elementos que mais gostava nos outros artistas da psicodelia brasileira e tivesse feito um disco com as proporções certas de cada elemento. O som é predominantemente percussivo, mas sem descuidar a parte melódica, com harmonias lindas e detalhes de guitarra simples, mas marcantes. A voz do Paulo é louca, comovente, desenfreada, desafiante... Tudo ao mesmo tempo. Ele me arrepia cada vez que ouço, ainda hoje, depois de ter ouvido o disco umas dez mil vezes.

Mas como o Bagunça tem muitos outros que me marcaram bastante. Poderia passar aqui o dia todo a nomeá-los. Gênios como Cartola, que escreveu poemas da mais alta sofisticação sendo analfabeto. Ou o Pedro "Sorongo" Santos, que fazia os seus próprios instrumentos de percussão porque os convencionais não chegavam aos impulsos criativos dele. A música brasileira está recheada de histórias fascinantes, onde se mistura a tragédia com a quase divindade. Sendo amante de música, e tendo a bênção de poder falar português, o fascínio é inevitável.

E o que você conhece de mais atual da música brasileira?

Tal como no som de antigamente, tem muita coisa de altíssima qualidade hoje em dia. Admiro o trabalho do meu amigo o DJ Tudo, por exemplo, que percorre o Brasil inteiro recolhendo gravações de tradições musicais de todo tipo. O sensacional Leitieres Leite e sua Orquestra Rumpilezz, que é uma verdadeira monstruosidade. Tal como o Tropicalismo mudou a maneira como eu olhava pra o rock psicodélico, o mestre Leitieres Leite mudou a minha maneira de olhar pra o jazz. Foi um dos melhores shows que eu vi na vida. Também gosto muito do Siba, outro cara excepcional, o Tom Zé, ainda ativo e com demasiada genialidade pra nós comuns mortais podermos entender. O Bixiga 70, bandão fodido, demolidor em cima do palco... O Lucas Santana com aquele baterista tocando num MPC em lugar de uma bateria propriamente dita... Os irmãos cariocas de "Do Amor", tudo gente boa e de um ecletismo no mínimo impressionante. O Metá-Metá, grande disco no ano passado... Mais uma vez, eu podia ficar aqui o dia inteiro enumerando.


Nas apresentações ao vivo, ocorre a inserção de um percussionista. É para enfatizar esse lado latino e/ou africano?

Correto. A verdade é que o objetivo não é enfatizar esse lado, ele é inserido porque o ingrediente percussivo é tão essencial ao nosso som como o fuzz na guitarra do Stuart. Vários dos ritmos que eu compus na bateria, eu fiz tomando em conta a contrapartida das congas ou os bongos, tal como se faz nos arranjos para as seções de sopros, por exemplo. Se a gente quisesse mesmo enfatizar esse lado seria preciso chamar três ou quatro percussionistas já que têm muitos momentos no disco onde há mesmo muitos instrumentos de percussão sendo tocados ao mesmo tempo. Seria maravilhoso!

Há a possibilidade de um segundo disco em breve? E se caso a paulista Kika Carvalho assumir em definitivo os vocais, trará horizontes ainda não explorados por Joel Stones?

Vamo-nos reunir no Barracão em fevereiro pra gravar o segundo disco. Temos alguns temas prontos que temos tocado ao vivo e o resto vamos simplesmente deixar fluir e ver o que é que surge já que essa é a nossa essência.

A Kika fez um trabalho fabuloso no primeiro disco. A voz dela encaixou perfeitamente naquilo que a gente precisava e contrastou muito bem com a do Joel. Não posso dizer se vamos contar com ela também no segundo, porque ainda não sei como é que as músicas vão ficar e todos os arranjos que a gente faz são em base do que a música pede à medida que vai ganhando forma. Tal como no Candomblé, quando o Orixá desce no medium pra traduzir o universo espiritual no físico, nós gostamos de deixar a música ditar o caminho. Somos apenas instrumentistas, o medium que ela usa pra se manifestar. Nesse sentido não posso adiantar nada porque tudo está em aberto. Só espero que corra tão bem como correu quando gravamos o primeiro.

O que representa a música hoje na sua vida e como você acha que ela pode mudar as pessoas?

A música é tudo. É como aquele amor complicado que nos mata, mas sem o qual não podemos viver. Vivo pra ela e vivo por ela. Entre todas as coisas maravilhosas que ela já me deu, tenho muitos amigos nos quatro cantos do mundo, pessoas que estimo muito, apesar de quase nunca as ver e das quais tenho aprendido muito. Acho que a música tem a capacidade de fomentar estados de espírito que pré-dispõe as almas a se abrirem a certas emoções que de outra maneira provavelmente não seriam sentidas. É uma força poderosa e sublime que torna o homem mais humano.



Clique aqui para ler a entrevista com o brasileiro Joel Stones


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